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Quando a Escola Veste Farda: Uma Reflexão Crítica Sobre o Manual das Escolas Cívico-Militares de Mato Grosso

Por mais que a proposta de escolas cívico-militares seja vendida como um caminho para resgatar a disciplina, a moral e o “bom comportamento” nas instituições de ensino, o Manual das EECM-MT deixa claro que o preço disso pode ser a renúncia à liberdade, à pluralidade e à própria essência pedagógica. Ao lê-lo com atenção, percebe-se que há menos de projeto educativo e mais de protocolo disciplinar. Um documento que, sob o pretexto de “ordem”, impõe um modelo escolar rígido, verticalizado e pouco conectado com os desafios da educação contemporânea. A seguir, apresento dez apontamentos que merecem atenção crítica e pública.

1. Militarização do cotidiano escolar
O manual dedica páginas inteiras a descrever formações, continências, comandos de voz e deslocamentos em fila. O espaço da aprendizagem é transformado em quartel, e o aluno, em recruta. A escola, antes um lugar de formação integral, torna-se um campo de adestramento comportamental.
Mas será que o bom cidadão se forma pela rigidez dos passos ou pela liberdade dos pensamentos?

2. Estética obrigatória como símbolo de controle
Detalhes como o tamanho das unhas, a cor do esmalte, o uso de boinas, cintos e meias tornam-se prioridades organizacionais. Cabelos precisam obedecer padrões milimetricamente descritos, como se o conhecimento científico dependesse do penteado correto.
Talvez devêssemos perguntar se Newton teria formulado a gravidade usando barba ou costeletas fora do padrão…

3. Ausência de um projeto pedagógico reflexivo
Não se encontra no manual qualquer referência a práticas pedagógicas modernas, metodologias ativas, inclusão, ou mesmo incentivo à pesquisa e ao pensamento crítico. Tudo gira em torno da ordem, do silêncio, da obediência.
E a curiosidade, que sempre moveu o conhecimento, teria espaço nesse ambiente rígido?

4. Hierarquia como valor supremo
Em vez de diálogo entre educadores e alunos, temos cadeias de comando. Em vez de mediação de conflitos, temos advertências, suspensões e perda de honrarias. A estrutura hierárquica substitui a autonomia intelectual por submissão simbólica.
Será que a escola deveria preparar líderes ou obedientes?

5. Vigilância sobre aspectos pessoais
Proibir namoros, controlar rigorosamente onde cada aluno pode andar, e fazer “checagens” de aparência e comportamento, aproxima a escola de um espaço autoritário.
É pedagógico vigiar os sentimentos adolescentes? Ou é apenas mais uma forma de conter o que não se pode controlar com regras?

6. Cidadania reduzida a gestos e símbolos
A concepção de “cívico” se limita a cantar hinos, fazer continência e usar farda. Nenhuma linha propõe o debate de temas sociais, políticos ou culturais que realmente formam o cidadão crítico.
Será que um aluno que sabe marchar, mas não sabe interpretar a Constituição, pode se considerar um cidadão pleno?

7. Gênero tratado de forma ultrapassada
A diferenciação rigorosa entre uniformes e padrões estéticos de meninos e meninas revela uma visão antiquada, que ignora identidades não-binárias e debates contemporâneos sobre igualdade de gênero.
O futuro está mesmo nos cabelos curtos para meninos e coques para meninas?

8. Diversidade? Que diversidade?
Não há menção a estudantes com deficiência, a políticas de inclusão, tampouco a qualquer reconhecimento das múltiplas identidades e culturas presentes no ambiente escolar brasileiro.
Ou será que a ideia é justamente apagar as diferenças para que todos se pareçam mais com soldados do mesmo exército?

9. Disciplina como substituta do diálogo
A disciplina descrita é militar — punitiva, rígida e pouco pedagógica. Faltam estratégias de escuta, empatia ou resolução pacífica de conflitos.
Será que um jovem que apenas obedece terá voz quando o mundo exigir posicionamento?

10. Ausência de participação democrática
Nenhum espaço é garantido à comunidade escolar para repensar, adaptar ou mesmo avaliar o modelo. Tudo é definido de cima para baixo.
E se a democracia fosse ensinada na prática, e não apenas em teorias distantes das salas com farda?

Conclusão
O modelo cívico-militar descrito neste manual parece mirar mais no controle do que na formação. Enquanto a sociedade caminha para mais escuta, inclusão e respeito às individualidades, o manual anda na contramão, em marcha forçada. Mais do que uma escola de “ordem e progresso”, o que se desenha é uma escola de silêncio e obediência. E isso, convenhamos, não forma cidadãos. Forma peças. E peças não mudam o mundo — apenas giram dentro dele.

Texto escrito por:
Layan Razec de Moura Silva, Vice-Presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas em Mato Grosso (UBES) e Diretor na Associação Matogrossense das e dos Estudantes Secundaristas (AMES-MT).

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